Relação entre Forma e Função
Conformação, aprumos e problemas ortopédicos no cavalo atleta
Por: Dr. Francisco José do Monte Lança*
Conformação é a forma ou delineamento de um cavalo ou sua aparência física rela-tiva ao arranjo dos músculos, dos ossos e outros tecidos, ou simplesmente “a relação entre forma e função”. A conformação tem um papel importante no julgamento morfológico de um cavalo. A sua avaliação é subjetiva e baseada na experiência ou na opinião de cada avaliador.
Embora muito já se saiba ao longo de 200 anos de estudo sobre a conformação dos cavalos e sua relação com o desempenho e problemas ortopédicos, poucos dados objetivos estão disponíveis aos criadores do cavalo atleta. Exclusivamente neste artigo serão tratados apenas os membros, lembrando que todo o corpo do cavalo está envolvido na conformação e na sua biodinâmica.
Conformação desejada
Peito: Olhando o cavalo de frente, os membros dianteiros não deverão ser nem demasiado distantes nem demasiado perto um do outro, já que juntos formam a largura do peito. Se muito distantes, resultarão em uma locomoção roliça, do tipo que poderá causar enjôo ao cavaleiro. Demasiado perto, vão predispor o cavalo aos ferimentos, já que existe o risco dele tocar os próprios membros quando se move.
Essas situações podem ser aliviadas através de casqueamento e ferrageamento, mas o melhor é que sejam evitadas desde o nascimento. A região peitoral deverá ter boa massa muscular e ser ampla, já que os cavalos com estas características terão melhor extensão e potência de movimento lateral do que cavalos com peitos fechados.
Joelhos e canelas: Os membros anteriores devem ser retos e não desviados para dentro ou para fora. Devem ser longos e musculados no antebraço. Os joelhos devem ser grandes e lisos, e não pequenos nem redondos, devido aos tendões passarem por eles, permitindo assim movimento e articulação máximos.
A canela não deve ser demasiado longa. Olhando o cavalo de lado, o joelho deve parecer baixo em relação ao membro. Se parecer elevado, significa que a canela é mais longa do que o ideal, e propensa à fraqueza. A forma com que a canela se junta no joelho é importante para a funcionalidade do membro.
Em alguns cavalos, você verá que essa junção aparece ‘garroteada’ a canela é mais fina logo abaixo do joelho e termina mais grossa no boleto. Isso pode restringir o movimento dos tendões. Em alguns casos, o cavalo pode estar ajoelhado com a canela se unindo atrás da linha do joelho.O oposto disso é o chamado joelho transcurvo, onde a linha frontal do membro se torna côncava.
Quartelas: A quartela é a parte absorvente do choque, carregando, às vezes, o peso inteiro do cavalo, mais o do cavaleiro. A quartela ideal, à semelhança dos membros, seria: nem demasiado longa, nem curta; nem inclinada, nem vertical demais. A longa colocará uma tensão adicional no ligamento suspensor do boleto e nos tendões flexores. A quartela demasiado vertical não atua suficientemente bem para superar os efeitos de choque do movimento, e assim todo o membro pode sofrer com problemas de manqueiras.
Curvilhões e canelas: Quanto ao membro traseiro, os curvilhões são uma das partes mais importantes. Agem como um absorvente adicional de choque. Assim como o joelho, é preferível estarem num ponto baixo do membro, diminuindo a tensão nas canelas posteriores. A forma como o alinhamento do curvilhão está ajustado no membro fará uma diferença na sua ação.
Idealmente, o ponto de alinhamento do curvilhão deverá ser embaixo da garupa, onde uma linha reta seja possa ser traçada na parte traseira da canela e continuar na parte traseira da garupa. Os cavalos com curvilhões que caem atrás desta linha terão falta de propulsão. Olhando o cavalo de trás, os membros devem ser retos, e sem curvilhão de vaca quando giram para dentro, acompanhados pelos cascos girados para fora; ou se curvam em demasia, quando os curvilhões giram para fora.
De lado, o cavalo não deve ser ter curvilhão de foice, onde a borda dianteira parece excessivamente curvada ou dobrada. Todas estas conformações podem causar manqueiras, comprometendo as qualidades anti-choque do curvilhão.
Cascos: O ditado “sem casco, sem cavalo!” é bem aplicado à conformação. O casco ideal terá de ser relacionado sempre com seus pares no tamanho e na forma. Os posteriores são maiores e com forma mais oval do que os anteriores. A muralha deve ser forte e flexível, não fraca nem mole, seca e dura, mantendo assim a elasticidade. Problemas com as paredes do casco significam dificuldade em manter ferraduras.
Ao casquear e ferrar o cavalo, é necessário preservar o tamanho natural do casco, mantendo os talões na mesma altura, e não o cortando demais para caber a ferradura, o que causa manqueiras e compromete as qualidades naturais anti-choque do casco. Os cascos devem apontar para a frente, não para dentro (periquito), nem para fora (pato). Devem ter ranilhas bem aparentes, bem saltadas e não devem ser quadradas, nem eretas, como encontradas nos muares. Os sulcos laterais em torno da parede do casco podem indicar laminite ou, no mínimo, mudanças na taxa de crescimento devido à doença, alterações na alimentação ou ao estresse.
Avaliação da conformação no primeiro ano de vida
Até 15 dias de vida - Olhando de frente, os potros recém-nascidos têm três tipos de desvios nos membros dianteiros: angulares, rotacionais e deslocamento de joelho. A avaliação dessa conformação em potros destinados à atividade atlética deverá ser feita o mais cedo possível, para que a intervenção seja realizada antes dos desvios tornarem-se permanentes. Os desvios angulares são causados por alterações das epífises ósseas ou das articulações, geralmente, joelhos (carpo), curvilhões (tarso) e boletos.
Traçando uma linha vertical imaginária em todo o membro, veremos desvios valgus quando para o lado interno da linha, e varus quando para o lado externo. É preciso salientar que poderão ser atingidas mais de uma articulação no mesmo membro. As deformidades rotacionais, também comuns, envolvem mais as articulações do joelho e antebraço no membro anterior e a articulação do empurrador, quando no membro posterior. Ao nível de boletos, ambos os tipos angulares e rotacionais poderão estar envolvidos.
Geralmente, esses desvios ocorrem em potros leves, com peito pequeno, onde há forças de pressão assimétricas sobre os centros de crescimento ósseo e conseqüente crescimento ósseo, também assimétrico. Outro fator que compromete a conformação é a presença de variados graus de ossificação em diferentes ossos, devido a uma má gestação. Tal problema leva ao desvio do tipo carpus e tarsus valgus (joelho e curvilhão para dentro) e hiperflexão (contratura de tendão).
O deslocamento do joelho (joelho rodado) é causado principalmente pela falta de crescimento dos ossos dessa articulação. O desvio mais comum, que requer tratamento cirúrgico, é o carpus valgus acentuado. Os restantes poderão ser corrigidos por meio de casqueamento corretivo, ferraduras ortopédicas e uso de bandagens e agentes químicos adstringentes. Desvios raros da arquitetura dos ossos, os varus e valgus congênitos e malformações, têm origem genética e os procedimentos terapêuticos são baseados na gravidade em que se apresentam.
Dos 15 dias aos 5 meses de idade - Nesse período ocorrem várias mudanças no crescimento dos potros. Aqui a conformação sofre a ação direta da genética, ganho de peso, crescimento e exercício, levando a algumas alterações nos membros dos potros. Alterações positivas são a perda gradual do carpus valgus e a rotação do boleto para fora. As menos desejadas são carpuse tarsus varus, joelho rodado e rotação do boleto para dentro.
Ao contrário do que se supõe, a abertura do peito não foi comprovada como fator de correção para mãos abertas e carpus valgus. A primeira alteração indesejável percebida é a chamada mãos para dentro (periquito), que ocorre a partir dos 30 dias de idade. O joelho rodado também ocorre nesse período, e não é tão severo. No entanto, por ter origem no crescimento desorientado dos ossos do joelho, é uma alteração contínua que deverá ser prontamente resolvida com casqueamento corretivo. O carpus varus geralmente é unilateral e poderá ocorrer devido a algum trauma no membro oposto.
Dos 5 meses a 1 ano de idade - As alterações ósseas nesta fase são menos drásticas do que nos períodos anteriores, mas é nessa fase que os desvios se tornam permanentes. Os potros ainda estão ganhando peso e, enquanto esse fator atua nos membros, as alterações na arquitetura óssea se tornam mais aparentes. Isso acontece por causa da redução de cartilagem e aumento de tecido ósseo nos membros.
Os desvios mais comuns nessa etapa são a mão para dentro e joelho rodado em graus severos. Apesar da gravidade, alguns fatores de crescimento ósseo ainda possibilitam o tratamento pelo casqueamento e ferrageamento corretivos e até intervenção cirúrgica com colocação de grampos.
Problemas ortopédicos e conformação
Uma pesquisa feita no Hipódromo de Los Alamitos (Anderson, Mcllwraith, Goodman and Overly, 2003) constatou a relação direta entre problemas ortopédicos e conformação. Dentre as mais variadas associações, as mais observadas foram as seguintes:
1) Úmero longo está associado a fraturas das falanges proximais e sinovite dos joelhos.
2) Membro anterior longo, pescoço longo e pinças dos cascos longas levam a fraturas do tipo “chip” no joelho.
3) Aumento do ângulo da paleta está associado a fraturas dos ossos do joelho e à diminuição da incidência de sinovite na mesma articulação, o que é contraditório.
4) A quartela mais vertical leva a maior incidência de sinovite no joelho e boletos
5) Mãos muito para fora estão associadas à maior chance de ocorrer fraturas de ossos do joelho, especialmente do direito.
6) Joelhos rodados levam a um aumento da ocorrência de fraturas e sinovites de ambos os joelhos e à formação de sobreossos nas canelas.
7) Joelhos transcurvos levam a uma maior incidência de fraturas no joelho logo no início das atividades atléticas.
Procedimentos corretivos
O cavalo perfeito é difícil de ser encontrado, mas alguns defeitos podem ser corrigidos. Em razão da capacidade do cavalo carregar peso ser dependente da inter-funcionalidade de todas as partes locomotoras, é importante que estas se alinhem corretamente, a fim de se tornarem o mais eficientes possível.
A correção dos desvios de membros terá de obedecer não apenas a uma aparência visual alinhada, mas também a toda uma biodinâmica. Ou seja, não adianta apenas deixar o membro alinhado, ele deverá estar simétrico com os demais e todas as articulações deverão estar preservadas, assim como a locomoção equilibrada. Para tal, é recomendado o casqueamento corretivo dos potros a partir dos 20 dias de idade e, regularmente, a cada 25-30 dias até o início das atividades atléticas.
Também poderão ser utilizadas ferraduras ortopédicas em casos mais graves. O uso de substâncias adstringentes como o iodo também é outra terapia que, quando bem utilizada, retorna ótimos resultados. Na opinião do autor, os procedimentos cirúrgicos deverão ser empregados em último caso ou em casos de gravidade acentuada, já que não deixam de ser um trauma ao membro do cavalo.
O objetivo de aprumar e alinhar os membros do cavalo não é apenas estético e preventivo de problemas ortopédicos, mas também serve para evitar perdas de tempo nas provas de velocidade e trabalho ocasionadas pela locomoção inadequada. Todos os desvios levam a perda de décimos de segundo, os quais poderão ser preciosos para a decisão de uma prova ou campeonato.
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